Vladimir, Míriam e Matheus

18.10.2016

Aos 10 anos, Mirinha, como é chamada carinhosamente na família, já era cercada de livros na infância transcorrida no interior de Minas Gerais. Apesar de ter nascido na imensa pobreza nordestina, o pai dela sempre se cercou de literatura. O pastor presbiteriano casou-se com uma professora primária. Ler era parte importante do universo de brincadeiras dos filhos. Especialmente da menina de Caratinga que, aos 10 anos, sabia muito bem o que queria ser quando crescesse, ainda que ficasse meio encabulada em admitir. “O professor de Português pediu para escrevermos uma redação: ‘O que eu quero ser quando crescer’. E eu não consegui escrever. Travei. Ele disse: ‘Mirinha, você faz sempre redação tão rapidamente. Por que você não está conseguindo fazer hoje?’ Eu fiquei assim meio constrangida. Aí ele falou que eu podia escrever o que realmente queria ser. Eu perguntei: ‘Posso mesmo professor?’ Ele disse que sim. Aí eu escrevi: ‘Eu quero ser escritora’”.

Dizem que quando a gente deseja algo com muita força, o pedido pode se realizar. Parece que Mirinha desejou com força suficiente pra impactar gerações. Seu filho Vladimir Netto, é uma das principais caras da cobertura política nacional e acaba de lançar um livro sobre a Operação Lava-Jato que vai virar série na Netflix. O caçula Matheus Leitão publicou uma grande reportagem de 40 páginas e 25 mil palavras, sobre a busca pelo homem que entregou seus pais  - Míriam e Marcelo Netto  - para serem torturados pela ditadura militar.

Mirinha sagrou-se escritora em 2010, com Convém Sonhar, uma reunião de crônicas. Mas desde os anos 70 ela já vinha contando histórias. Míriam Leitão é uma das jornalistas mais respeitadas do país, com análises econômicas veiculadas nos telejornais, rádio e jornais impressos das Organizações Globo.

No livro seguinte, Saga brasileira: A longa luta de um povo por sua moeda (2011), Míriam fez um verdadeiro apanhado da história econômica recente do país. Ao falar com propriedade sobre inflação, planos econômicos e as agruras do povo brasileiro até a estabilidade trazida pelo Real arrebatou o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não-Ficção, em 2012.

Como a sisudez dos fatos oficiais não deixa espaço para invencionices, logo Míriam estreou na ficção com o romance Tempos extremos (2014), sobre o encontro de uma família contemporânea marcada pela herança dos tempos da ditadura militar e do período de escravidão no Brasil. Foi uma forma de resgatar o próprio passado, e também de sua família, numa ficção.

Em 1972, aos 19 anos, grávida do primeiro filho, Vladimir, ela foi presa e torturada nos porões da ditadura. Entre tapas, chutes e fome, Míriam chegou a ser trancada em uma sala escura com uma jiboia, no 38º Batalhão de Infantaria do Exército, no Espírito Santo. O medo de ser atacada pela cobra fez com que ela ficasse imóvel por horas. Ela foi libertada depois de 3 meses e 11 quilos a menos. Vladimir nasceu saudável.

Matheus

Após a saída de Míriam da prisão, Marcelo Netto continuo preso. Ficou 13 meses no total, 9 deles numa solitária.

“Na pequena sala, sendo esmurrado aqui e ali para responder perguntas, meu pai mudou. As novas agressões, que se repetiam como se tivessem sendo feitas pela primeira vez, transformaram um querido líder estudantil, carinhoso e amável com todos, conhecido como ‘Marcelinho’, em um homem introvertido”, escreve Matheus Leitão num trecho de A espera, a reportagem em que narra a busca pelo homem que delatou Míriam e Marcelo aos militares.

A história dos pais foi revivida em pesquisas ao longo de 13 anos pelo filho mais novo, Matheus. Ele mergulhou em todas as pistas do que havia ocorrido com os pais na ditadura. E decidiu ir atrás do cara que entregou os jovens do partido comunista para os militares. “Não foi um processo fácil porque envolve uma ferida da minha família. Mas foi uma coisa que nasceu naturalmente dentro de mim. E acho que eles respeitaram isso e viram que, de alguma forma, eu também precisava dessas respostas, entende? Psicologicamente eu acho que tem uma questão... Porque meu pai e minha mãe foram presos. Ela estava grávida do Vladimir. Eu era o único que não estava lá”, analisa Matheus.

Era como se fosse de Matheus a prerrogativa da busca. Vladimir, o filho mais velho, confessa que não gosta do tema. Míriam só abriu o jogo completamente sobre isso em 2014. Foi justamente quando Matheus sentiu que havia ali a brecha para trazer o assunto à tona em uma reportagem. Depois de mais de uma década de pesquisa e incontáveis horas acumuladas em arquivos empoeirados dos porões do exército, ele escreveu, em primeira pessoa, como foi reencontrar o homem que entregou os pais aos militares. Foi uma realização pessoal e profissional.

Cara a cara com Foedes dos Santos, um pouco mais velho do que seus pais, Matheus quis saber o que ele tinha para dizer. Ele era o homem cujo nome não se falava muito, mas que era quase possível ser ouvido aos sussurros, por todos os cômodos da casa.  E, depois de horas de conversa, Matheus deixou-o com seu perdão nas mãos. “Eu esperava que ele fosse falar que não entregou, dizer que não foi bem assim, mas ele foi muito sincero e admitiu: ‘Entreguei. Entreguei nessas condições, eu não tive estrutura’. Eu acredito que o perdão nasce de você tratar de uma verdade, né? E eu senti verdade naquilo que ele estava me falando o tempo todo”, lembra. “Confesso que fiquei em dúvida sobre algumas coisas, é claro, mas ele foi muito coerente. E eu senti a dor dele também. A dor de... de alguém que de certa forma se escondia, não falava desse assunto... e carregava um peso muito grande pelas coisas que aconteceram”, completa.

Depois de publicar a reportagem, Matheus foi convidado pela editora Intrínseca para fazer um livro sobre a história, que será lançado no primeiro semestre do ano que vem.  Agora, na família, só falta Matheus publicar um livro. A mãe tem seis, o pai é um dos autores de Memórias de uma Guerra Suja (2012), o padrasto, Sergio Abranches, é reconhecido por publicações ligadas à sustentabilidade e ao meio ambiente e escreveu os romances O pelo negro do medo (2012) e Que mistério tem Clarice? (2014) e o irmão lançou em junho Lava Jato – O juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil, desde o lançamento na lista dos mais vendidos de Não-Ficção.

Vladimir

Vladimir é “setorista” - um jargão jornalístico para definir quem acompanha sempre um determinado assunto - da Polícia Federal em Brasília. Nos últimos meses, com os desdobramentos de operações contra a corrupção, era figurinha quase diária nos principais telejornais da Rede Globo. Ele percebeu que o hard news do dia a dia daria um livro em 2014, quando Paulo Roberto e Alberto Youssef fizeram delações premiadas durante a Operação Lava-Jato. “Aquilo já era completamente novo, porque era um agente público, um ex-diretor da Petrobras, falando tudo lá de dentro, como é que era a visão de dentro. E isso era uma coisa nova pra gente, sociedade brasileira, e até pra os próprios investigadores”, conta.

Vladimir teve pouco menos de dois anos de pesquisa ao longo do desdobramento da operação policial - que investiga o esquema de desvio e lavagem de dinheiro envolvendo a Petrobras - até o livro ser impresso. Debruçou-se sobre um volume enorme de material e passou um bocado de noites atravessadas. Tentava, sempre que possível, conciliar a pauta do dia na TV Globo com o material que usaria no livro. “Um amigo meu, o Marcos Losekann, que é repórter lá da Globo, e já escreveu alguns livros, fala: ‘O livro a gente nunca termina, é interrompido. Eles arrancam o livro da gente’. E realmente esse livro me foi arrancado. Se deixasse eu estaria até hoje escrevendo ele, acompanhando e checando e vendo, e acrescentando mais histórias, e mais histórias, porque a Lava-Jato não parou, né? O dia que o livro foi pra gráfica foi o dia em que o japonês foi preso. E de lá pra cá milhões de coisas aconteceram. Então, assim, a Lava-Jato não parou e não vai parar”, conta Vladimir, que promete uma continuação. O livro também vai virar série dirigida por José Padilha para a Netflix.

Por caminhos diferentes, Vladimir e Matheus tornaram-se jornalistas. E, mais tarde, jornalistas investigativos. “Minha mãe se mistura com os livros que ela escreve. Meu irmão é personagem do livro dele. E eu estou de fora do meu”, observa Vladimir Netto.

Todo mundo junto e misturado

Na última Bienal de São Paulo, Míriam Leitão, Vladimir Netto e Matheus Leitão dividiram um bate-papo com leitores. “Eu que levava os dois meninos para a Bienal de São Paulo, com a esperança de que gostassem de livros, estava ali com eles, hoje dois homens, falando de seus livros. O Vladimir Netto falava do seu Lava Jato que está há 10 semanas no primeiro das listas e o Matheus Leitão Netto que acaba de entregar os originais do seu livro à Intrínseca. Dois livros lindos, de estilos diferentes. Dois filhos lindos”, escreveu Míriam ao compartilhar uma foto do trio em seu perfil no Facebook.

Uns trinta anos atrás, Míriam dava as mãos para os pequenos Vladimir e Matheus pelos corredores das bienais de São Paulo e do Rio de Janeiro, para escolher livros. “Eu lia muita história pra eles, eu ia com eles a todas as bienais. Eu mostrava pra eles como é que se escolhia um livro. Sentava no chão de uma livraria e falava: ‘Olha, você pega o livro por aqui, por aqui. Olha, isso aqui te interessa?’ Eu sempre incentivei muito”, conta Míriam.

Matheus se lembra da infância percorrendo bienais e livrarias. “Desde que me entendo por gente eu estava lá sentado no chão da Bienal ou numa livraria. Minha mãe dizia: ‘Ah, os livros de vocês já acabaram, vamos procurar novos livros’ ou ‘Alguém me indicou esse livro, falaram que talvez você fosse gostar, está na sua idade’ e tal.”

“Desde criança, a gente foi muito incentivado e eu acho que isso faz diferença, porque a gente não consegue ficar sem estar lendo um livro, sem ter um livro. Mesmo na correria eu pego um livro, assim, final de semana, quando eu não estou trabalhando eu tento ler um pouco. O livro é uma companhia pra mim, nos momentos de dor, nos momentos de alegria. Me ajuda a entender até os meus próprios sentimentos, a minha vida, me ajuda a pensar no futuro, a resolver o passado”, Matheus Leitão

Segundo Vladimir, a troca literária -e jornalística- é constante na rotina da família. “Eu digo que os almoços de domingo são reuniões de pauta. Porque começa assim, com uma análise do noticiário do dia. Aí a gente faz uma espécie de briefing da imprensa, dos fatos mais importantes da semana. Eu brinco que a gente tinha que ter um programa de TV só pra comentar”, conta, aos risos. “Já surgiu muita ideia de pauta, muita troca de livro nesses momentos”.

Ele aposta em um futuro cada vez mais voltado para a veia escritora para a mãe. “É muito bacana ver essa transformação da minha mãe de jornalista pra escritora. Porque ela sempre teve essa vontade, desde criança. E aí ela demorou muito pra escrever, acho que ela demorou um pouco pra conseguir se soltar. Então quando veio o Convém Sonhar, que é o primeiro livro, já foi legal. Aí veio o Saga e foi aquele sucesso. Aí pronto, ela relaxou e acho que o Tempos Extremos já representa, assim como os livros infantis, uma fase dela mais solta, em que ela está brincando. O romance foi realmente uma coisa muito legal pra ela”, reforça.

Falando em romance, foi por causa de um que Míriam estreitou a relação com o atual marido, Sérgio Abranches. Depois de mais de 10 anos separada, ela não acreditava que fosse se casar de novo até que...

Depois que os netos começaram a crescer, Míriam passou a escrever também para crianças. São quatro em casa: duas meninas de Vladimir e um menino e uma menina de Matheus. “Surpreendi muita gente que achava que eu só sabia falar de economia. Meus netos é que me levaram de volta para o mundo da literatura infantil”, confessa. “Foram eles.”

Hoje, olhar para trás e saber que a menina de 10 anos estava certa ao escrever a redação na aula de Português deixa Míriam em estado de graça. ”É uma sensação de realização incrível. Eu sou uma pessoa realizada no sentido de que eu sou o que eu sonhei ser”, conclui.


Família Leitão
Míriam Leitão, jornalista e comentarista da Rede Globo, é também escritora de crônicas e livros infantis. É uma das jornalistas mais premiadas do país e vencedora do Prêmio Jabuti de não-ficção de 2012 com Saga Brasileira. É a mãe de Vladimir Netto, repórter da TV Globo em Brasília e de Matheus Leitão, também jornalista na Globo, com especialização em jornalismo investigativo pela Universidade de Berkeley (EUA) e passagem pela Folha de S.Paulo e Época. O pai dos dois é o também jornalista Marcelo Netto, que passou pelos maiores veículos nacionais e assessorou o governo Lula. A vivência de família influenciou as escolhas profissionais, que fazem parte dos momentos de família. Os almoços de domingo do clã são como reuniões de pauta.

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